A África do Sul para além da copa do mundo
Francisco Bicudo
As escolas começam a pensar em como reorganizar as atividades para que professores e alunos possam acompanhar os jogos da seleção brasileira. O álbum de figurinhas que traz os astros das diversas seleções participantes do Mundial transformou-se em verdadeira febre, e os cromos são trocados freneticamente em ambientes de trabalho, nas áreas livres de universidades, em bares e restaurantes. Nas mais diferentes rodas de conversa, aliás, discute-se com toda a propriedade – e há argumentos para todos os lados – se Neymar, Paulo Henrique Ganso e Ronaldinho Gaúcho devem ou não ser convocados pelo técnico Dunga.
Em tempo: o mistério será desfeito no próximo dia 11 de maio, uma terça-feira, às 13 horas, quando será divulgada a convocação oficial do Brasil. Emissoras de televisão exibem reportagens especiais sobre a Copa, jornais impressos trazem entrevistas e perfis de alguns dos craques que poderão se transformar em protagonistas da disputa. Na internet, começam a ser feitas as apostas, os tradicionais “bolões”. Quem vai ser mesmo o campeão? O artilheiro? Na Europa, os campeonatos chegam ao fim, com os clubes mais poderosos do planeta liberando jogadores das mais diferentes nacionalidades – é assim que funciona a babel globalizada futebolística – a se apresentarem às suas seleções.
O mundo, enfim, já acionou o cronômetro da contagem regressiva e começa a respirar, cada vez mais intensamente, os ares da Copa do Mundo da África do Sul – a primeira disputa a ser travada em continente africano. A bola começa a rolar, em 11 de junho, às onze da manhã, no estádio Soccer City, na cidade de Johanesburgo, na partida que reunirá a seleção anfitriã e o México. Mas, para além do espetáculo proporcionado pelo futebol, qual será a África do Sul que o mundo terá a oportunidade de conhecer? Qual a realidade atualmente vivida pela nação que durante quase meio século, de 1948 a 1990, viu-se diante do domínio institucionalizado do regime de apartheid, que defendia a supremacia branca e a segregação racial?
“É um país animado com a perspectiva de receber um evento com dimensão planetária. A realização da Copa representa para os sul-africanos uma espécie de conquista nacional, pois significa a reinserção digna e legítima do país no cenário internacional”, diz Valdemir Donizette Zamparoni, professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos e do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao mesmo tempo, destaca o pesquisador, aqueles que estiverem dispostos a um olhar mais crítico e não apenas a ver futebol conhecerão uma nação ainda marcada por tensões e distorções sociais, apesar das conquistas.
“A África do Sul conseguiu avançar bastante após o fim do apartheid, nas áreas de habitação, fornecimento de energia, saneamento básico, políticas de cotas e de empregos, diminuição do analfabetismo. O mercado de trabalho local é capaz de absorver uma significativa mão-de-obra negra, que forma uma classe média representativa. Na esfera política, há esforços nacionais institucionalizados que privilegiam tolerância e negociação e uma legislação bastante específica que rompe efetivamente com o histórico de segregação”, avalia Leila Maria Gonçalves Leite Hernandez, professora de História da África da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
Desigualdades permanecem
Ela ressalta, no entanto, que muitos problemas e desigualdades ainda permanecem. Cita como exemplo a dificuldade e a lentidão na distribuição das terras, que historicamente estiveram concentradas nas mãos da minoria branca, e revela que essa situação não foi modificada. “É uma questão séria e que permanece. Pouco se pôde fazer. Há uma resistência interna enorme à reforma agrária, estabelecida pelos fazendeiros e grandes proprietários, além da pressão do sistema internacional e do grande capital, com quem, nesse caso, os governos pós-apartheid se alinharam”, explica Hernandez, que é autora de A África na Sala de Aula (a 2ª edição, de 2008, foi atualizada).
Em 2009, o Produto Interno Bruto (PIB) da África do Sul, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), era de 277 bilhões de dólares (para efeito de comparação, o do Brasil chegou a um trilhão e quatrocentos trilhões; o do Japão, a cinco bilhões; e o dos Estados Unidos, o maior do mundo, a 14 trilhões de dólares). Também no ano passado, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH – medido pela Organização das Nações Unidas, a ONU, considera educação, saúde e padrão de vida) atingiu 0.683, número que colocava a África do Sul em 129º lugar no ranking mundial (o Brasil alcançou 0,813, ficando na 75ª posição). Segundo Leila, 15% a 20% da população concentram quase 40% da renda, enquanto 30% a 35% acumulam 15% das riquezas; oito em cada dez sul-africanos não encontram emprego. “Dos 35 milhões de cidadãos sul-africanos negros, somente cinco mil ganham mais do que sessenta mil dólares por ano. O número de brancos nessa faixa de renda é vinte vezes maior, e muitos ganham muito mais do que essa quantia”, escreve a jornalista canadense Naomi Klein, em “A Doutrina do Choque”. “Nas áreas rurais, 60% dos negros não têm ocupação. O número de pessoas que sobrevive com menos de um dólar por dia duplicou nos últimos vinte anos. Um terço da população continua sem saber ler ou escrever. O índice de repetência atinge 70% das crianças negras”, complementa a repórter Daniela Pinheiro, na reportagem “Diamantes Negros”, publicada pela edição de abril da revista Piauí.
Para muitos críticos do projeto adotado pela África do Sul logo após o fim do apartheid, como a própria Naomi Klein, o cenário atual de exclusão e de mazelas sociais seria o resultado da adoção de políticas neoliberais, como privatizações, achatamento salarial e perseguição aos sindicatos. Zamparoni lembra que o Congresso Nacional Africano (CNA), partido formado pela maioria negra e no poder desde 1994, quando foi realizada a primeira eleição multirracial do país, não era uma agremiação monolítica; ao contrário, sempre foi uma grande frente, capaz de acomodar várias correntes ideológicas e tendências, desde marxistas e socialistas até setores mais liberais. O pesquisador diz que foi uma vitória sair do apartheid, em clima de extrema tensão, sem um banho de sangue. “Essa transição se deu em condições muito específicas, e não havia qualquer possibilidade de pensar na chegada ao poder da maioria negra e ao mesmo tempo implantar reformas socialistas. A mudança econômica negociada teria de se dar mesmo no campo liberal”. “Não me sinto à vontade para usar a expressão neoliberal, porque penso que seja imprecisa. Mas as negociações lideradas pelo Nelson Mandela sempre apontaram na direção de uma não ruptura com o capital. Não havia ilusões”, completa Leila.
Mudanças econômicas e sociais
O professor da UFBA admite que a partir de 1994 o ritmo de crescimento do país diminui. Mas ressalta, no entanto, que há também uma visível disposição do governo em inverter prioridades na alocação de investimentos, que passam a ser redirecionados, deixando de atender apenas à minoria branca para beneficiar a população excluída, principalmente nas áreas de habitação e saneamento. “Mas é preciso mais do que uma década e meia para que os impactos desse movimento possam ser sentidos”, completa.
Esse novo contexto histórico teria sido responsável por abrir espaço para o surgimento de “uma nova elite negra”, os chamados “diamantes negros”, como destaca a reportagem de Daniela Pinheiro, na Piauí. A professora da FFLCH/USP manifesta desconforto em relação a essa expressão, que considera simplificadora e banalizadora das questões da África. Ela diz que, claro, as elites negras substituem as elites coloniais no exercício do poder, formando governos de maioria negra. E, à frente das administrações públicas, vão cometer erros, desmandos e exageros, mas também acertos. “O problema é que as críticas vão invariavelmente recair sobre os erros, como se tudo que está na África devesse ser condenado. É uma visão unilateral da história africana”, lamenta. Ela cita a própria transição pacífica liderada por Mandela, feito que poucos vislumbravam como possível, como exemplo de vitória, em um processo de negociação em que as elites negras foram protagonistas. “E aí, como ficamos nesse caso?”, questiona.
A pesquisadora também pede cuidado e serenidade na repetição da tese que diz que os negros acabaram por criar um racismo às avessas. A expressão, criada pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre para compreender o pan-africanismo dos anos 1950 e 60, que desempenhou papel fundamental nos movimentos nacionalistas e por independência na África, seria agora retomada com outra conotação – uma postura revanchista pós-apartheid. Para ela, esse sentimento coletivo de vingança não existe, embora ações pontuais e conflitos isolados envolvendo brancos e negros por vezes se concretizem, como no recente episódio do assassinato do fazendeiro branco Eugene Terreblanche, líder do Movimento de Resistência Afrikáner, morto a machadadas por trabalhadores rurais negros, no início de abril. “A África do Sul não é a perfeição, a terra da igualdade. Mas não acho que possamos assumir ideologicamente essa análise que advoga que ‘os negros chegaram ao poder e agora vão perseguir os brancos’”, avalia Leila. Zamparoni complementa o raciocínio e lembra que há disputas específicas que se misturam com mágoas e dívidas ancestrais. “Nessas situações, é difícil a questão racial não vir à tona. A memória do apartheid ainda é muito viva no país”, diz, para imediatamente completar: “Mas não é a maioria. E o caminho da intolerância nunca deve ser elogiado”.
O professor da UFBA comenta duas outras mazelas que marcam a realidade contemporânea política e social da África do Sul: a corrupção e a epidemia de Aids. Sobre a primeira, ele diz que é uma prática que vem à tona por conta da chegada ao poder, depois de longo período de luta, de um grupo que jamais havia feito parte da administração pública, e que acaba se deslumbrando com a perspectiva de abocanhar o máximo possível, no menor espaço de tempo. “Também não é exclusividade da África do Sul, mas característica marcante desses processos de mudança. Veja só a Rússia. Com a queda do projeto socialista, sobe ao poder uma camada social que rapidamente se transforma no que há de mais voraz em termos de acumulação imediata de capital”, compara. Com relação à Aids, que afeta mais de quatro milhões de sul-africanos, segundo a Unaids, o pesquisador explica que é preciso considerar a questão a partir de uma perspectiva cultural. Segundo ele, para os sul-africanos, é importante ter família grande, muitos herdeiros, o que enraíza a convicção de que manter relações sexuais com preservativo não é adequado. “A urbanização acelerada pós-apartheid criou certo deslumbramento, uma euforia por poder vivenciar esse novo mundo, o que acaba por incentivar a prostituição, maior promiscuidade e o surgimento de um mercado propício para o sexo fora da família”, diz.
Os dois pesquisadores brasileiros garantem que é possível pensar sem sustos ou receios em uma África do Sul pós-Nelson Mandela. Garantem que as instituições no país estão consolidadas e que as disputas e tensões em andamento fazem parte da democracia. Zamparoni define o líder sul-africano como um gênio político, que amadureceu durante os quase 28 anos (1962-1990) em que esteve preso e que conseguiu liderar uma transição pacífica e negociada. “Sem ele, não haverá retrocesso, retorno à violência explícita”, reforça. Para Leila, a melhor palavra para definir Mandela é coerência. “Foi sempre muito fiel à luta por liberdade, à sua base social de apoio e aos interesses da maioria da população. Ajudou a construir instituições sólidas, capazes de continuar essa caminhada, mesmo sem a presença dele”, destaca a professora da USP.
A Copa do Mundo, aliás, poderá também cumprir um pouco desse papel de cimentar a unidade nacional. O filme Invictus, dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Morgan Freeman e Mat Damon, ambientado na mesma África do Sul e que recentemente esteve em cartaz no Brasil, é um exemplo evidente de como o esporte ajuda a suplantar ódios e revanchismos. Isso sem falar nas potenciais consequências benéficas para a economia (obras, infra-estrutura, empregos, rede de serviços, turismo). “O que vai ficar? Qual será o rescaldo? Se vai ter continuidade? Não sabemos”, diz Leila. Zamparoni alerta: “Claro que o Mundial ajuda. Mas só o circo não é suficiente. É preciso pensar no pós-Copa, na melhoria contínua das condições de vida da maioria da população.”.
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As escolas começam a pensar em como reorganizar as atividades para que professores e alunos possam acompanhar os jogos da seleção brasileira. O álbum de figurinhas que traz os astros das diversas seleções participantes do Mundial transformou-se em verdadeira febre, e os cromos são trocados freneticamente em ambientes de trabalho, nas áreas livres de universidades, em bares e restaurantes. Nas mais diferentes rodas de conversa, aliás, discute-se com toda a propriedade – e há argumentos para todos os lados – se Neymar, Paulo Henrique Ganso e Ronaldinho Gaúcho devem ou não ser convocados pelo técnico Dunga.
Em tempo: o mistério será desfeito no próximo dia 11 de maio, uma terça-feira, às 13 horas, quando será divulgada a convocação oficial do Brasil. Emissoras de televisão exibem reportagens especiais sobre a Copa, jornais impressos trazem entrevistas e perfis de alguns dos craques que poderão se transformar em protagonistas da disputa. Na internet, começam a ser feitas as apostas, os tradicionais “bolões”. Quem vai ser mesmo o campeão? O artilheiro? Na Europa, os campeonatos chegam ao fim, com os clubes mais poderosos do planeta liberando jogadores das mais diferentes nacionalidades – é assim que funciona a babel globalizada futebolística – a se apresentarem às suas seleções.
O mundo, enfim, já acionou o cronômetro da contagem regressiva e começa a respirar, cada vez mais intensamente, os ares da Copa do Mundo da África do Sul – a primeira disputa a ser travada em continente africano. A bola começa a rolar, em 11 de junho, às onze da manhã, no estádio Soccer City, na cidade de Johanesburgo, na partida que reunirá a seleção anfitriã e o México. Mas, para além do espetáculo proporcionado pelo futebol, qual será a África do Sul que o mundo terá a oportunidade de conhecer? Qual a realidade atualmente vivida pela nação que durante quase meio século, de 1948 a 1990, viu-se diante do domínio institucionalizado do regime de apartheid, que defendia a supremacia branca e a segregação racial?
“É um país animado com a perspectiva de receber um evento com dimensão planetária. A realização da Copa representa para os sul-africanos uma espécie de conquista nacional, pois significa a reinserção digna e legítima do país no cenário internacional”, diz Valdemir Donizette Zamparoni, professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos e do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ao mesmo tempo, destaca o pesquisador, aqueles que estiverem dispostos a um olhar mais crítico e não apenas a ver futebol conhecerão uma nação ainda marcada por tensões e distorções sociais, apesar das conquistas.
“A África do Sul conseguiu avançar bastante após o fim do apartheid, nas áreas de habitação, fornecimento de energia, saneamento básico, políticas de cotas e de empregos, diminuição do analfabetismo. O mercado de trabalho local é capaz de absorver uma significativa mão-de-obra negra, que forma uma classe média representativa. Na esfera política, há esforços nacionais institucionalizados que privilegiam tolerância e negociação e uma legislação bastante específica que rompe efetivamente com o histórico de segregação”, avalia Leila Maria Gonçalves Leite Hernandez, professora de História da África da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).
Desigualdades permanecem
Ela ressalta, no entanto, que muitos problemas e desigualdades ainda permanecem. Cita como exemplo a dificuldade e a lentidão na distribuição das terras, que historicamente estiveram concentradas nas mãos da minoria branca, e revela que essa situação não foi modificada. “É uma questão séria e que permanece. Pouco se pôde fazer. Há uma resistência interna enorme à reforma agrária, estabelecida pelos fazendeiros e grandes proprietários, além da pressão do sistema internacional e do grande capital, com quem, nesse caso, os governos pós-apartheid se alinharam”, explica Hernandez, que é autora de A África na Sala de Aula (a 2ª edição, de 2008, foi atualizada).
Em 2009, o Produto Interno Bruto (PIB) da África do Sul, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), era de 277 bilhões de dólares (para efeito de comparação, o do Brasil chegou a um trilhão e quatrocentos trilhões; o do Japão, a cinco bilhões; e o dos Estados Unidos, o maior do mundo, a 14 trilhões de dólares). Também no ano passado, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH – medido pela Organização das Nações Unidas, a ONU, considera educação, saúde e padrão de vida) atingiu 0.683, número que colocava a África do Sul em 129º lugar no ranking mundial (o Brasil alcançou 0,813, ficando na 75ª posição). Segundo Leila, 15% a 20% da população concentram quase 40% da renda, enquanto 30% a 35% acumulam 15% das riquezas; oito em cada dez sul-africanos não encontram emprego. “Dos 35 milhões de cidadãos sul-africanos negros, somente cinco mil ganham mais do que sessenta mil dólares por ano. O número de brancos nessa faixa de renda é vinte vezes maior, e muitos ganham muito mais do que essa quantia”, escreve a jornalista canadense Naomi Klein, em “A Doutrina do Choque”. “Nas áreas rurais, 60% dos negros não têm ocupação. O número de pessoas que sobrevive com menos de um dólar por dia duplicou nos últimos vinte anos. Um terço da população continua sem saber ler ou escrever. O índice de repetência atinge 70% das crianças negras”, complementa a repórter Daniela Pinheiro, na reportagem “Diamantes Negros”, publicada pela edição de abril da revista Piauí.
Para muitos críticos do projeto adotado pela África do Sul logo após o fim do apartheid, como a própria Naomi Klein, o cenário atual de exclusão e de mazelas sociais seria o resultado da adoção de políticas neoliberais, como privatizações, achatamento salarial e perseguição aos sindicatos. Zamparoni lembra que o Congresso Nacional Africano (CNA), partido formado pela maioria negra e no poder desde 1994, quando foi realizada a primeira eleição multirracial do país, não era uma agremiação monolítica; ao contrário, sempre foi uma grande frente, capaz de acomodar várias correntes ideológicas e tendências, desde marxistas e socialistas até setores mais liberais. O pesquisador diz que foi uma vitória sair do apartheid, em clima de extrema tensão, sem um banho de sangue. “Essa transição se deu em condições muito específicas, e não havia qualquer possibilidade de pensar na chegada ao poder da maioria negra e ao mesmo tempo implantar reformas socialistas. A mudança econômica negociada teria de se dar mesmo no campo liberal”. “Não me sinto à vontade para usar a expressão neoliberal, porque penso que seja imprecisa. Mas as negociações lideradas pelo Nelson Mandela sempre apontaram na direção de uma não ruptura com o capital. Não havia ilusões”, completa Leila.
Mudanças econômicas e sociais
O professor da UFBA admite que a partir de 1994 o ritmo de crescimento do país diminui. Mas ressalta, no entanto, que há também uma visível disposição do governo em inverter prioridades na alocação de investimentos, que passam a ser redirecionados, deixando de atender apenas à minoria branca para beneficiar a população excluída, principalmente nas áreas de habitação e saneamento. “Mas é preciso mais do que uma década e meia para que os impactos desse movimento possam ser sentidos”, completa.
Esse novo contexto histórico teria sido responsável por abrir espaço para o surgimento de “uma nova elite negra”, os chamados “diamantes negros”, como destaca a reportagem de Daniela Pinheiro, na Piauí. A professora da FFLCH/USP manifesta desconforto em relação a essa expressão, que considera simplificadora e banalizadora das questões da África. Ela diz que, claro, as elites negras substituem as elites coloniais no exercício do poder, formando governos de maioria negra. E, à frente das administrações públicas, vão cometer erros, desmandos e exageros, mas também acertos. “O problema é que as críticas vão invariavelmente recair sobre os erros, como se tudo que está na África devesse ser condenado. É uma visão unilateral da história africana”, lamenta. Ela cita a própria transição pacífica liderada por Mandela, feito que poucos vislumbravam como possível, como exemplo de vitória, em um processo de negociação em que as elites negras foram protagonistas. “E aí, como ficamos nesse caso?”, questiona.
A pesquisadora também pede cuidado e serenidade na repetição da tese que diz que os negros acabaram por criar um racismo às avessas. A expressão, criada pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre para compreender o pan-africanismo dos anos 1950 e 60, que desempenhou papel fundamental nos movimentos nacionalistas e por independência na África, seria agora retomada com outra conotação – uma postura revanchista pós-apartheid. Para ela, esse sentimento coletivo de vingança não existe, embora ações pontuais e conflitos isolados envolvendo brancos e negros por vezes se concretizem, como no recente episódio do assassinato do fazendeiro branco Eugene Terreblanche, líder do Movimento de Resistência Afrikáner, morto a machadadas por trabalhadores rurais negros, no início de abril. “A África do Sul não é a perfeição, a terra da igualdade. Mas não acho que possamos assumir ideologicamente essa análise que advoga que ‘os negros chegaram ao poder e agora vão perseguir os brancos’”, avalia Leila. Zamparoni complementa o raciocínio e lembra que há disputas específicas que se misturam com mágoas e dívidas ancestrais. “Nessas situações, é difícil a questão racial não vir à tona. A memória do apartheid ainda é muito viva no país”, diz, para imediatamente completar: “Mas não é a maioria. E o caminho da intolerância nunca deve ser elogiado”.
O professor da UFBA comenta duas outras mazelas que marcam a realidade contemporânea política e social da África do Sul: a corrupção e a epidemia de Aids. Sobre a primeira, ele diz que é uma prática que vem à tona por conta da chegada ao poder, depois de longo período de luta, de um grupo que jamais havia feito parte da administração pública, e que acaba se deslumbrando com a perspectiva de abocanhar o máximo possível, no menor espaço de tempo. “Também não é exclusividade da África do Sul, mas característica marcante desses processos de mudança. Veja só a Rússia. Com a queda do projeto socialista, sobe ao poder uma camada social que rapidamente se transforma no que há de mais voraz em termos de acumulação imediata de capital”, compara. Com relação à Aids, que afeta mais de quatro milhões de sul-africanos, segundo a Unaids, o pesquisador explica que é preciso considerar a questão a partir de uma perspectiva cultural. Segundo ele, para os sul-africanos, é importante ter família grande, muitos herdeiros, o que enraíza a convicção de que manter relações sexuais com preservativo não é adequado. “A urbanização acelerada pós-apartheid criou certo deslumbramento, uma euforia por poder vivenciar esse novo mundo, o que acaba por incentivar a prostituição, maior promiscuidade e o surgimento de um mercado propício para o sexo fora da família”, diz.
Os dois pesquisadores brasileiros garantem que é possível pensar sem sustos ou receios em uma África do Sul pós-Nelson Mandela. Garantem que as instituições no país estão consolidadas e que as disputas e tensões em andamento fazem parte da democracia. Zamparoni define o líder sul-africano como um gênio político, que amadureceu durante os quase 28 anos (1962-1990) em que esteve preso e que conseguiu liderar uma transição pacífica e negociada. “Sem ele, não haverá retrocesso, retorno à violência explícita”, reforça. Para Leila, a melhor palavra para definir Mandela é coerência. “Foi sempre muito fiel à luta por liberdade, à sua base social de apoio e aos interesses da maioria da população. Ajudou a construir instituições sólidas, capazes de continuar essa caminhada, mesmo sem a presença dele”, destaca a professora da USP.
A Copa do Mundo, aliás, poderá também cumprir um pouco desse papel de cimentar a unidade nacional. O filme Invictus, dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Morgan Freeman e Mat Damon, ambientado na mesma África do Sul e que recentemente esteve em cartaz no Brasil, é um exemplo evidente de como o esporte ajuda a suplantar ódios e revanchismos. Isso sem falar nas potenciais consequências benéficas para a economia (obras, infra-estrutura, empregos, rede de serviços, turismo). “O que vai ficar? Qual será o rescaldo? Se vai ter continuidade? Não sabemos”, diz Leila. Zamparoni alerta: “Claro que o Mundial ajuda. Mas só o circo não é suficiente. É preciso pensar no pós-Copa, na melhoria contínua das condições de vida da maioria da população.”.
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