Publicado na Folha da Manhã, quarta-feira, 19 de abril de 1944 |
Thomas Mann (Famoso escritor alemão, autor de "A Montanha Mágica") — Nova York A música é um grande mistério. Em virtude de sua natureza sensual-espiritual e da surpreendente união que ela realiza entre a regra estrita e o sonho, entre a razão e a emoção, entre o dia e a noite, ela é sem dúvida o mais profundo, o mais fascinante e, aos olhos do filósofo, o mais inquietante dos fenômenos. Desde a minha juventude eu tenho refletido sôbre o seu enigma, procuro contorná-lo, e resolvê-lo. Como escritor, eu ia aonde me levava o caminho da música, cedendo inconscientemente à sua influência no meu estilo e na minha eterna maneira, e sempre me sinto feliz quando amadores e mestres da música gostam da minha obra pelo que apresenta de afinidade com a música. Desde cedo na minha vida, a admiração e a curiosidade fizeram-me procurar a companhia de músicos; isto me proporcionou desencantos e decepções em alguns casos, mas em outros uma larga e rica experiência. Escrevo estas linha para testemunhar o meu respeito a um homem que é meu amigo há mais de uma geração, que por vinte anos foi meu bom e amável vizinho num subúrbio de Munich, e com o qual partilho hoje um rumo político idêntico e um sofrimento comum. Êsse sofrimento não é uma questão pessoal —pois a nossa pátria adotiva tem sido boa para nós— mas surge de sombrio destino do país de onde saimos —a Alemanha, o país da mais boa música, êsse páis ambíguo que se transormou numa ambígua ameaça à liberdade e aos direitos humanos e que fêz com que a humanidade indignada mobilizasse suas imensas fôrças defensivas. Há cinquenta anos, em Colônia, Bruno Walter, um rapaz de 17 anos, empunhou pela primeira vez a batuta para dirigir a execução do "Waffenschmied", de Lortzing. E um jornal de Colônia escreveu isto a respeito: "Dentro de muito pouco tempo esse jovem maestro dará o que falar". Assim aconteceu, e a tal ponto que a própria música está em causa quando se fala de Bruno Walter. Pois êsse homem, que agora tem 67 anos, é um dos 4 ou 5 destacados representantes e guardiães da música. E a sua própria recordação dos últimos cinquenta anos acompanha um trecho da história musical inseparável do seu próprio desenvolvimento e das suas realizações. Também vai de par com um trecho da história universal cheia de agitados acontecimentos - aconteceimentos que o forçaram, como a todos nós, enfrentar firmemente os problemas básicos da humanidade, o problema do próprio homem. Êle olha para trás com o olhar pensativo que foi dolorosamente experimentado, que cresceu com os anos em experiência e sabedoria; que, ao refletir sobre sua vida, não pode deixar de incluir muita coisa que não está em sua esfera pessoal, muita coisa que diz respeito à arte e à humanidade. E eu ouso dizer que neste seu 67.º aniversário, seus pensamentos estão seguindo linhas muito semelhantes ao do meu quando escrevo sobre ele. Harmonia - isto é mais do que um conceito estético, é um princípio cósmico; esta palavra está no princípio, ou muito perto do princípio do pensamento ocidental. Ela deriva da filosofia grega-socrática, da idéia pitagórica do mundo. A palavra "harmonia" significa música, mas apenas secundariamente; originalmente, quer dizer matemática. A matemática foi a grande paixão de Pitágoras, bem como a proporção abstrata, o número, de que aquêle espírito devoto e austero fêz o princípio mesmo da craição e da conservação do mundo. Naqueles dias remotos, êle olhava para a natureza como alguém que a conhece, que havia sido iniciado; e pela primeira vez falou nela, sublimemente, como num "cosmos", como ordem e harmonia, como sistema espiritual e sonoro das esferas. Visto que o número e a relação numérica estão no próprio âmago do ser, essa concepção une reverentemente tudo o que é belo, verdadeiro e racionalmente moral. Mas o mundo não é todo êle acôrdo e harmonia de esferas; êle possui tendências irracionais e demoníacas que os gregos não desprezam, mas procuraram dominar e integrar em sua religião. Assim o culto de Eleusis adorava as fôrças obscuras do mundo inferior. E o pensamento pitagórico também tinha as caracteristicas de um mistério religioso, daqueles ritos secretos que incluiam uma espécie de drama sagrado e tiveram grande influência no desenvolvimento da filosofia grega. Essas cerimônias religiosas implicavam uma situação do mundo como um todo, tanto o racional como o irracional. A mais bela herança que devemos aos gregos é êsse conceito cultural que insiste numa piedosa e santificante inclusão das fôrças da treva no culto dos deuses. Se o mundo é música, inversamente, a música é o reflexo do mundo, de um cosmos semeado de fôrças demoníacas. Música é número, a adoração do número, é álgebra ressonante. Mas a própria essência do número não conterá um elemento de mágica, um toque de feitiçaria? A música é uma teologia do número, uma arte austera e divina, mas uma arte em que todos os demônios estão interessados e que, entre tôdas as artes, é a mais susceptível ao demoníaco. Pois ela é ao mesmo tempo código moral e sedução, lucidez e embriaguez, um apêlo ao mais intenso estado de alerta e um convitre ao mais doce sonho de encantamento, razão e anti-razão - em suma, um Mistério com tôda a iniciação e os ritos educativos que desde Pitágoras foram parte integrante de todos os mistérios. E os sacerdotes e mestres da música são os iniciados, os preceptores dêsse ser duplo, a totalidade demoníaco-divina do mundo. Vida, humanidade e cultura. Durante as últimas décadas os povos do ocidente, os alemães em primeiro lugar, ficaram decepcionados com a razão, na qual tinham posto excessiva confiança. E assim, numa espécie de voluptuoso desespêro, dedicaram-se a um culto exagerado e tendencioso das fôrças da treva, ao irracional e ao demoníaco. Pensaram ver a vida na anti-razão. Julgaram-na chamados a defendê-los contra a inteligência, e assim fazendo perderam de vista o verdadeiro conceito de humanidade, que nunca é uma parte ou outra, mas só atinge a realização no Mistério do todo. Num tremendo sofrimento, êsses povos do Ocidente voltam-se para recuperar êsse conceito religioso. Apoderou-se dêles uma esperança apaixonada no sentido de um mundo melhor e mais justo —mais justo em todos os sentidos, inclusive o de um equilíbrio humano mais feliz. É a esperança de uma humanidade que, ao invés de reprimir e portanto exasperar o irracional, aceita francamente, venera e portanto santifica essas fôrças demoníacas e coloca-as ao serviço da cultura. Não admira que tantos corações se inclinem com maior fervor e ansiedade do que nunca para os mistérios da música e que ao mesmo tempo os problemas da educação tomem o primeiro lugar nos pensamentos e nos debates públicos. |
terça-feira, 13 de abril de 2010
A MISSÃO DA MÚSICA NO MUNDO MODERNO
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